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Pontes ou muros entre as américas? Um experimento de fisiologia...


A ideia de que um muro ou uma ponte possa separar ou unir os espíritos de dois povos é uma ideia política originada da fisiologia(*) – portanto, é uma velha biopolítica. E, da fisiologia coletiva, que considera um povo como a união entre uma mente e um corpo formados pelas muitas mentes e corpos individuais dos seus membros.

Essa crença fisiológica, a ser comprovada, aparece nesse enunciado de um experimento possível: “Se o cérebro de um homem pudesse ser dividido com uma faca em duas partes e cada uma delas continuasse a funcionar, sua consciência seria então dividida em duas consciências; e, inversamente, se uma ponte funcional de matéria nervosa pudesse ser estabelecida entre os cérebros de dois humanos, sua consciência iria se fundir em uma única consciência.”**



* “FISIOLOGIA. Propriamente, estudo das funções dos corpos vivos [...] – por extensão, diz-se algumas vezes dos estudos da funções mentais; mas, em geral, para dar a entender que essas funções, se fossem mais conhecidas, seriam aquelas do sistema nervoso”. LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 2 ed. Paris: Quadrige/PUF, 2006 [1926]. P. 780.

(**) MCDOUGALL, William. The Group Mind. 2 ed. London: Cambridge University Press, 1927 [1920]. P. 33.


Os indivíduos e o meio


A arte de governar o múltiplo dos indivíduos na modernidade baseia-se, cada vez mais, na compreensão (e na constituição) das relações causais desses indivíduos com o meio em que estão supostamente imersos. Isso é o que se compreende por biopolítica. O meio biopolítico é um meio natural, ligado à essência corporal do humano-animal.

Esse tipo de governo não é então uma ação direta sobre os indivíduos, mas principalmente sobre as condições do meio no qual seus corpos se encontram.

Essa naturalidade corporal do humano pode ser expressa também em termos incorporais, anímicos, psíquicos, como nesse trecho de Le Bon (1895): “Só a uniformidade dos meios cria a uniformidade aparente dos caracteres. [...] todas as constituições mentais contêm possibilidades de caracteres que podem se revelar sob a influência de uma brusca mudança do meio”*.

Basicamente, para Le Bon, qualquer carácter é um virtual em qualquer mente. As mentes se determinam pelo meio psíquico, o conjunto de sentimentos, opiniões e ideias circulantes em que estão inseridas. Trabalhar sobre esses elementos do pensamento, desde fora, desde o meio, é a forma de governar o múltiplo das almas, de produzir o seu carácter.

Apesar de ser um governo psíquico, o que Le Bon propõe é, historicamente, uma espécie de biopolítica. A charada da biopolítica está em compreender o por quê.



(*) LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: PUF, 1963 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015. P. 17.



Massa, plebe e miopia


Difícil discernir, num falante, quando se trata de desprezo da massa (da homogeneidade) ou de desprezo da plebe (do que não é nobre), pois a plebe não está, em geral, massificada ou homogeneizada. Diz-se da plebe que ela é massa. Ela é tratada como se fosse. Muitas vezes, no entanto, isso é apenas um sintoma de miopia (de quem olha de longe e não enxerga bem).

Nobre é o indivíduo especial que se destaca da plebe, do vulgo, do humano vulgar, de algum modo, seja pelo talento artístico, pela formação intelectual, pela beleza, pela riqueza, pela raça ou seja por que for. Na sua pretensa distância, o nobre míope – ou quem se imagina nobre por, além de ser míope, sofrer também de hipermetropia – percebe a plebe sempre como massa.





Psico-político-análise II: biopolítica, tanatopolítica, pulsão de vida, pulsão de morte


Os opostos, então, não abrem dois caminhos distintos, mas apenas um único e mesmo, seja na consciência (na ciência), seja no inconsciente.

Assim, talvez fique mais fácil entender a intrigante copresença da biopolítica e da tanatopolítica (copresença que invoca a questão: por que, justamente, ao dedicarem-se à vida e ao agirem em nome dela, os governos se tornam tão assassinos?).


Robôs

Para Spinoza: “[...] todos [os indivíduos], mesmo que em graus diversos, são animados [...]”*. Tudo pensa (entende, tem ideias, sente, imagina, percebe) com maior ou menor gama de intensidades. O pensamento é infinito. Tudo tem mente ou alma, é animado, ou seja, vive. A vida não é um privilégio orgânico ou biológico. A vida é um operador existencial.

http://www.nytimes.com/2015/06/18/technology/robotica-sony-aibo-robotic-dog-mortality.html?emc=edit_th_20150618&nl=todaysheadlines&nlid=44029019


(*) e2p13cs. Ethica, escólio que se segue ao corolário da proposição 13 da segunda parte.

Palavrão freudiano II


O “novo” caminho-interpretativo que passava por Freud já não nos leva adiante. Percorrê-lo nos traz de volta, sabemos agora – depois da destruição do complexo de Édipo* –, sempre ao mesmo lugar. Isso não quer dizer que devemos sem mais descartá-lo, para seguir adiante. Mas, sim, que devemos, radicalmente, perguntarmo-nos: _que necessidade temos de ir adiante? _E o que ir adiante significa?



(*) DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe: Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1973.

Biopolítica ou bio-economia

Subtítulos: Governo econômico dos modos de viver, Administração da vida pela publicação da intimidade dos lares


Dispositivo

O desejo é vida. E a vida não é, de fato, conceituável*.

A vida é o único e múltiplo “horizonte absoluto ou plano de imanência”**, e, como tal, jamais se deixa lançar adiante da vista (enquanto eidos, forma, aspecto visual e inteligível de uma essência), sem também se deixar ocultar atrás da vista – no, momentaneamente, invisível e impensável.

Assim, não é por nada, que o diabolizado Donald Rumsfeld falou do known known (do que sabemos saber, do que salta aos olhos, do evidente), do known unknown (disso que sabemos desconhecer) e do diabólico unknown unknown (disso que desconhecemos desconhecer)***.

Um modo de ser ou de viver (bios, modus vivendi) é uma determinação do desejo, uma disposição (hexis***-*) adquirida mediante o hábito, a autoformação ou o adestramento.

A determinação objetiva do desejo só se dá em um dispositivo. O dispositivo nada mais é do que uma máquina de captura, governo, direção e orientação dos desejos que o constituem.

Essa máquina de desejos é também evidenciável como uma prática discursiva***-**. Quer dizer, compreende a regulação de um modo de objetivação que lança adiante, que torna objetivo, que põe o desejo à mostra (e, na verdade, com efeito, simultaneamente, o oculta), numa evidência, numa sua determinação, como desejo de alguma coisa.

O dispositivo é um dispositivo do desejo. Por isso, sem desejo envolvido (na objetivação e na ocultação ou, dito de outro modo, na consciência e na inconsciência) não há dispositivo.

A genealogia propriamente dita ou a ontologia do presente

Lentamente e cada vez mais profundamente, nosso desejo tem se associado a um objeto determinado, o dinheiro (o símbolo de tudo, o símbolo por excelência). Põe-se à vista, portanto, o desejo como desejo de dinheiro, como simples interesse econômico, como desejo do lar.

Em sociedades monetárias, nas quais a moeda regula o ritmo da economia dos desejos, o dinheiro se torna o ícone, o índice e o símbolo de qualquer alegria, de qualquer aumento do desejo, e, por isso, o bem mais desejado, o sumo, o mais elevado objeto da avareza e da emulação***-***.

Assim, evidentemente, por exemplo, já não disputamos um simples campeonato de futebol apenas por disputar ou para vencer, mas razoavelmente para ganhar os prêmios financeiros decorrentes da vitória (que se torna, cada vez mais, apenas um meio para alcançar o prêmio)***-***-*.

Desse modo, nesse presente, a visão geral, panorâmica, de um macro-economista, como Rubens Ricupero, pode pensar o mundo sem pensar nas singularidades: os múltiplos modos de viver, os lares, os desejos. Nessa visão panorâmica, o mundo se mostra como uma série (finitíssima) de cinco alternativas de dispositivos, que ignora e desconsidera, como irrelevante, qualquer acontecimento, porque concebe e predispõe os desejos enquanto eventos sob uma lei econômica objetiva***-***-**.



(*) Conferir o artigo de Ferris Jabr, Why Nothing Is Truly Alive, no NYT. Sem perder de vista o site de Theo Jansen: www.strandbeest.com.

(**) DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997 [1991]. P. 52.

(***) “Reports that say that something hasn’t happened are always interesting to me, because as we know, there are known knowns; there are things we know we know. We also know there are known unknowns; that is to say we know there are some things we do not know. But there are also unknown unknowns — the ones we don’t know we don’t know. And if one looks throughout the history of our country and other free countries, it is the latter category that tend to be the difficult ones”. Donald Rumsfeld citado por Errol Moris, em artigo no NYT.

(***-*) ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque. Trad. Jules Tricot [1990, 2007]. Paris: Vrin, 2012. I, 1103b20-25. P. 96.

(***-**) FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969. P. 65.

(***-***) Conferir: SPINOZA. Ética, e4cap28.

(***-***-*) conferir: globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2014/03/queda-do-fla-na-libertadores-pode-comprometer-orcamento-em-r-10-mi.html

(***-***-**) Conferir RICUPERO, Rubens. Desindustrialização precoce: futuro ou presente do Brasil? Le Monde Diplomatique Brasil, ano 7, número 80, março 2014.

Progresso da humanidade


O nosso progresso pode se medir pela quantidade de corpos humanos vivos (nunca fomos tantos) ou, inversamente, pela nossa ingente capacidade de matar-nos (nunca pudemos ser tão poucos).

Família, velho lar de nossos bens e males


Assim como especulava com os títulos de suas empresas, espalhando por toda parte um punhado de boatos, para sobrevalorizá-las, a burguesia dos novecentos, na sua afirmação histórica, sobrevalorizava a família (como condutor, por hereditariedade, ao mesmo tempo, de cargas biológicas e morais de fundo religioso). É o que fica patente no diálogo que se segue.
OSVALD – Era um dos grandes médicos daquele lugar. Foi preciso descrever-lhe o que eu sentia; depois, ele começou a me fazer uma série de perguntas que me pareceram sem qualquer relação com o meu estado; eu não percebia aonde ele queria chegar.
MADAME ALVING – Continue.
OSVALD – Ele acabou me dizendo: Há em você, desde o seu nascimento, alguma coisa de “vermoulu”; foi a expressão que ele usou.
MADAME ALVING, escutando com uma atenção concentrada – O que ele queria dizer?
OSVALD – Era isso precisamente o que eu não compreendia, eu lhe pedi para que se explicasse mais claramente. Ele disse, então, o velho cínico... (Fechando o punho.) Oh!... 
MADAME ALVING – Ele disse?
OSVALD – Ele disse: Os pecados dos pais recaem sobre seus filhos. 
MADAME ALVING, levantando-se lentamente – Os pecados dos pais...!

IBSEN, Henrik. Les revenants [1882]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 333. 

Eliminar o podre


Eu gostaria de desaparecer com toda esta sociedade podre. Mas, outras gerações virão depois de nós. Tenho meu filho, por quem eu devo trabalhar. Eu quero prepará-lo para uma grande tarefa. Virá a época em que a verdade encontrará seu lugar na vida social; talvez sua existência será mais feliz do que aquela de seu pai.*

Biopolítica. A ideia de que da dolorosa eliminação da podridão possam-se abrir os campos e os tempos para o que é bom e verdadeiro, como parte da ideia de que a destruição se justifica por sua capacidade criadora...

Na maioria das vezes, senão sempre, porém, a eliminação da podridão elimina junto as sementes dessa esperança.


(*) IBSEN, Henrik. Les Piliers de la société [1877]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 157, in fine.

Isso que há, isso que não há

Biopoder. _Afinal, o que há, nessa situação, que me provoca tanta ansiedade? Ou será a falta de um medicamento adequado?

Nosso corpo vivo

O problemo do nosso corpo vivo não está no corpo ou na vida, mas na apreensão objetivadora que um certo dispositivo (ou imperium) – o biopoder – faz do corpo e da vida como nossos.

O cerco do poder medical tem uma folga

O poder medical nos espreita continuamente (seu olhar de vigia é constituinte do nosso modo próprio de nos ver).

Por isso, Proust suspira com um certo alívio, quando pode constatar: “a medicina não é uma ciência exata”*.

(*) PROUST, Marcel. Sodome et Gomorrhe I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1993 [1922]. P. 107.

Uma vida humana

Imagine uma vida como essa: um corpo ao qual são providas todas as suas carências e não apenas isso, um corpo que não precisa se esforçar, nem mesmo caminhar, para obter os prazeres e para se afastar dos males, pois uma perfeita providência ou império se ocupa disso para ele. Um corpo de gozo dosado, sem desmedidas, integral, sem desequilíbrio, e constante, sem grandes variações de intensidade. Um corpo feliz. Um corpo bebê.

Seria essa uma vida humana? Leiamos Spinoza:

Quando então dissemos tal império ótimo ser, onde humanos em concórdia [a] vida passam, [uma] vida humana inteligo não aquela [que se define] somente pela circulação do sangue e outras coisas que a todos os animais são comuns, mas aquela que se define principalmente pela razão e pela verdadeira virtude e vida da alma.

SPINOZA, Benedictus de. Tractatus Politicus [1677]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677. Cap. II, §5. P. 290.

A ênfase ao texto foi dada por Laurent Bove (Espinosa e a psicologia Social: Ensaios de ontologia política e antropogenêse). Belo Horizonte: Autêntica, 2010. P. 103.

Definição de uma vida

Uma vida é o nome da duração de uma existência, da existência de um corpo que, enquanto dura, deseja (e não pode desejar o contrário) afirmar essa existência, ou seja, deseja a si mesmo na relação com outros corpos.

Não precisamos apelar, nesta definição de uma vida, para categorias biológicas. Então uma vida já não é um critério de recorte entre os seres (vivos e não-vivos). Todo corpo (ou alma) vive enquanto dura. Todo o ser vive.

Um corpo, sendo ao mesmo tempo uma alma, pode não ser o objeto da biologia.

Faço um convite para que retiremos nossas lentes biológicas, ao fazermos a leitura dos dois textos seguintes.

O de Dickens (Our mutual friend, cap. III)...
Ninguém tem a mínima consideração pelo homem [trata-se de Riderhood]: com todos eles, ele tem sido objeto de repúdio, suspeita e aversão; mas a fagulha da vida dentro dele é curiosamente separável dele mesmo, e eles têm profundo interesse nisso, provavelmente porque aquilo é vida, e eles estão vivos e devem morrer.

Veja! Um sinal de vida! Um indubitável sinal de vida! A fagulha pode queimar-se e exaurir-se, ou ela pode inflamar-se e expandir-se, mas veja! Os quatro rudes comparsas, vendo-a, derramam lágrimas. Nem Riderhood neste mundo nem Riderhood no outro poderiam arrancar lágrimas deles; mas uma alma humana combatente, entre os dois, pode fazer isso facilmente.

... e este de Faulkner (Palmeiras selvagens, p. 155):
[...] falando com ninguém tanto quanto o grito de um coelho moribundo não se dirige a nenhum ouvido mortal, mas é sim uma acusação a toda a vida, e à sua loucura e sofrimento, à sua infinita capacidade de loucura e dor, que parece ser sua única imortalidade [...]

A biologia aqui não nos faz falta.

Luta por reconhecimento

Pierre Hassner considera a luta por reconhecimento uma das formas de expressão da revolta árabe.

Entretanto, gostaria de considerar que a luta por reconhecimento envolve também uma rendição, um render-se.

Na luta por reconhecimento é preciso distinguir dois movimentos: um pela identidade e um por direitos iguais.

Quem luta por reconhecimento diz duas coisas: _Quero ser reconhecido. _Quero ter direitos.

Estas duas vontades se articulam assim: _Eu sou ISTO e enquanto tal quero ter direitos.

ISTO é uma variável, cujo lugar é ocupado por diferentes gêneros ou identidades: mulher, negro, homossexual, nordestino, proletário, estrangeiro, judeu, árabe, protestante, doente mental...

_Eu sou ISTO e, enquanto sou assim, quero ser cidadão (ter meu direito reconhecido por outros cidadãos).

Cidadão-isto, cidadão-aquilo, cidadão-mulher, cidadão-negro etc.

As diversas lutas por reconhecimento vão tornando mais geral a categoria do cidadão, que vai se tornando pouco a pouco mais abrangente, até idealmente abrangir a todos os indivíduos de um grupo (até mesmo eventualmente os não-humanos).

A cidadania vai passando por cima das diferenças.

Cidadão = homem = mulher = branco = negro = etc.

E, assim, o poder soberano, o poder que se exerce entre os seres enquanto são cidadãos e não-cidadãos, neutraliza os recortes dicotômicos sim-não feitos por outros tipos de poder.

O poder soberano parece, a partir disso que se disse, ter uma dificuldade para fazer por si mesmo o recorte entre o cidadão e o não-cidadão. Portanto, para fazê-lo, apela para outros regimes, por exemplo, os disciplinares, os biopolíticos, os teológicos, que funcionam por normas, através das normas, e não por ou através dos direitos.

O recorte (e a exclusão) do não-cidadão parece constituir a essência mesma do poder soberano. Mas, se esse recorte provém mesmo de outros regimes de poder, então o poder soberano parece ser indissociável deles. No seio do poder soberano, na sua essência, parece vigorar um outro tipo de poder, não um regime de poder específico, como o biopolítico, mas um regime qualquer que seja capaz de dizer a norma da exclusão.

O cidadão incluído é definido pela exclusão do não-cidadão. Dessa forma, o não-cidadão permanece incluído no poder soberano. Pois, o recorte é constitutivo do poder soberano.
O recorte, diz-se, procede de uma decisão arbitrária do soberano. De tal modo que a decisão, o poder de decisão é o que caracteriza o soberano.

Esta decisão não é, porém, o índice do livre-arbítrio do soberano se ela se vincula às normas estabelecidas por outros regimes sim-não: os disciplinares que separam disciplinados de não-disciplinados, os biopolíticos que separam os puros dos impuros, os ecopolíticos que separam uma classe econômica de outras ou os teológicos que separam os fiéis dos infiéis.

O poder soberano é atravessado por esses regimes de exclusão para estabelecer sua própria exclusividade, ao transformar as normas desses regimes em leis e direitos.

A identidade, a variável do “eu sou ISTO”, isto-mulher, isto-negro ou isto-árabe, é definida primeiramente nos regimes de exclusão por normas. São esses regimes que dão a base ideológica ou material para a decisão do soberano.

Por isso, dizer “eu sou ISTO” é primeiro uma rendição e somente depois uma luta. Significa primeiro uma rendição nos planos dos regimes de exclusão por normas: _eu aceito ser ISTO que você diz que eu sou. E vão, com a rendição, primeiro reforçar estes regimes, para então sustentar a luta no plano da soberania.

_Enquanto sou ISTO mesmo que você diz que eu sou (um outro em relação a você), eu luto, eu exijo ser reconhecido como um cidadão igual a você no plano da soberania (embora no plano dos regimes das normas, eu permaneça sendo diferente, anormal).

Quando a luta por reconhecimento triunfa e aos anormais são atribuídos direitos, o poder soberano neutraliza os regimes das normas. Entretanto, ao mesmo tempo, encerra os cidadãos em suas identidades.

A identidade, nesse jogo dos regimes das normas, é definida pelo outro. E assim permaneço preso à minha própria alteridade, pois é o outro que se define e me define a partir de um recorte que não é estabelecido por mim.

A identidade é apenas uma figura, uma determinação externa do meu ser, que não me é essencial, mas antes o limita, ao determiná-lo. Lutar pelos direitos de uma identidade é primeiro capitular a uma forma que me é ditada pelo outro.

Características essenciais do sujeito

Em Proust (um dos primeiros retratos de Albertina):
Ao falar, Albertina mantinha a cabeça imóvel, apenas fazia mexer a ponta dos lábios. Disso resultava um som alongado e nasal, na composição do qual entravam talvez hereditariedades provinciais, uma afecção juvenil de fleuma britânica, as lições de uma instrutora estrangeira e uma hipertrofia congestiva da mucosa do nariz.*
Embora essas características não fossem constantes, pois Proust logo em seguida escreve que elas desapareciam quando Albertina relaxava, ainda assim, constituíam traços essenciais e determinantes do caráter, da personalidade dela.

Mas, nessa caracterização hipotética (notar o talvez) de Albertina, entram elementos que são característicos do próprio século XIX: a determinação do caráter também por características do corpo – a hereditariedade e a fisiologia – além da simples instrução. Características que, na concepção do século, o sujeito do corpo não pode facilmente contornar.

(*) PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 440.

A analítica

No processo analítico de pensamento, trata-se de partir de algo posto na ideia – uma evidência ou uma hipótese –, e mostrar suas dobras e seus desdobramentos tautológicos ou imanentes.

As dobras são os modos de reflexão internos, os constituintes constituídos pela própria evidência ou hipótese. Os desdobramentos são sua irradiação, seus raios, suas luzes, suas linhas de instituição, seus instituídos.

Na analítica da finitude, por exemplo, o que está posto, como evidente, substancial ou essencial é a condição finita do ser humano. A finitude aqui é a finitude positiva, não a privativa (não aquela que encontra sua gênese na privação de infinitude). As dobras da finitude são a fala, o trabalho e a vida. Os desdobramentos, o biopoder.

O verdadeiro Deus

Os racionalistas se afirmaram contra a superstição. Disseram aos supersticiosos: _ vocês possuem a opinião da religião de que Deus é isso ou aquilo, mas na verdade Deus é necessidade, eternidade e infinitude.

Entretanto essa afirmação, que se faz contra alguma coisa, faz com que os racionalistas, de certo modo, aceitem a superstição, como uma projeção confusa da verdade sobre o plano do conhecimento próprio à imaginação e à opinião – o único gênero de conhecimento a que pode aceder o ignorante.

O sábio aceita a superstição como uma espécie de sabedoria para ignorantes. Apesar de confusa, a religião, sendo uma vulgarização da metafísica, conduz, pelos caminhos da confusão, o ignorante a crer em Deus e a agir conforme essa fé, o que pode, dentro de certos limites, convergir com o agir racional.

Também podemos, por outro lado, pensar invertidamente essa relação entre a ideia confusa de Deus e a verdadeira.

Então, seriam os supersticiosos que aceitariam a metafísica, como uma projeção sobre o plano da razão das verdades da religião. Nessa inversão, é o supersticioso que aceita a metafísica como uma espécie de religião para incrédulos. Apesar de falsa em seus princípios, a metafísica, sendo uma humanização da religião, conduz, pelos caminhos da confusão, o sábio a conhecer a Deus e a agir a partir desse conhecimento, o que pode, dentro de certos limites, estar conforme com a prática religiosa.

Sábios metafísicos e religiosos estão encerrados na mesma grade arqueológica. Em uma outra grade está o fim da metafísica e a morte de Deus.

O 5º gênero de conhecimento

Spinoza, em 1660, identificou quatro modos de conhecimento de uma coisa: o simples ouvir dizer algo de alguma coisa, a experiência vaga com a coisa, a noção da coisa pelo que tem de comum com outras coisas e a percepção direta da coisa pela sua essência singular*. (Na Ética, 1675, esses gêneros são três: imaginação, razão e ciência intuitiva).

Um quinto (ou quarto) gênero de conhecimento surgiu, na história, um pouco depois do desaparecimento de Spinoza, tornando-se cada vez mais central para o conhecimento moderno. Trata-se da estatística**. A estatística é basicamente uma tecnologia de apreensão do múltiplo enquanto múltiplo. Apesar da anomalia das singularidades, a estatística desenvolve ferramentas para a apreensão da lei do múltiplo. É o tipo de conhecimento que tornou possível a biopolítica, o governo da população pela segurança (saúde, previdência, economia).

Um dos primeiros objetos correlatos da estatística foi a população. Essa correlatividade do objeto com a tecnologia de sua apreensão indica que a população é uma entidade que surge ao mesmo tempo que as técnicas de seu governo pelo Estado.

O puro conhecimento estatístico, não sendo um conhecimento pela essência, seria considerado, por Spinoza, um conhecimento não adequado.

Inicialmente, a estatística baseou-se na simples contagem das unidades. Depois, desenvolveram-se maneiras de projetar a contagem efetuada da amostra sobre o todo, do qual a amostra é uma parte, levando-se em conta um certo erro mensurável dessa projeção.

O conhecimento estatístico contenta-se apenas com o conhecimento da probabilidade maior ou menor de que dois acontecimentos ocorram simultaneamente. Por exemplo, [fumar] e [câncer]. A estatística mede a alta correlação entre [fumar] e [câncer], para afirmar que quem fuma corre sérios riscos de saúde. Embora não possa explicitar a razão pela qual [fumar] e [câncer] estão correlacionados, nem possa afirmar que necessariamente o fumo é causa do câncer (muitas singularidades fumam sem apresentar qualquer sinal da doença).

Muito antes de se conhecer os micro-organismos e o mecanismo de imunização, o controle da varíola por inoculação já era admitida como uma técnica eficaz, no final do século XVIII.

A maior parte do nosso conhecimento atual, não só na medicina, como na economia, na física e nas mais diversas disciplinas, é um conhecimento desse quinto tipo. Na perspectiva de Spinoza, portanto, a maior parte da nossa ciência não é adequada.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Traité de la Reforme de l’Entendement [1660]. Trad. Ch. Appuhn. In: Oeuvres I. Paris: GF Flammarion, 1964. § 10.

(**) FOUCAULT, Michel. Em muitíssimos lugares, por exemplo: Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France, 1977-1978. Paris: Seuil/Gallimard, 2004 [1978].