Orient(ação)

O Oriente não existe. Seu ser recua a cada passo que damos em sua direção. O Oriente não existe, quer dizer, não existe além daqui. Ele é pura presença não substancial. É uma distância presente aqui mesmo, ao nosso pé.

Os materialistas, por sua vez, dizem: o Oriente é o nome de uma troca material.

Agora já não sei se, ao falar do Oriente, eu mesmo estou de alguma forma coagido a dizer o que digo.

Características essenciais do sujeito

Em Proust (um dos primeiros retratos de Albertina):
Ao falar, Albertina mantinha a cabeça imóvel, apenas fazia mexer a ponta dos lábios. Disso resultava um som alongado e nasal, na composição do qual entravam talvez hereditariedades provinciais, uma afecção juvenil de fleuma britânica, as lições de uma instrutora estrangeira e uma hipertrofia congestiva da mucosa do nariz.*
Embora essas características não fossem constantes, pois Proust logo em seguida escreve que elas desapareciam quando Albertina relaxava, ainda assim, constituíam traços essenciais e determinantes do caráter, da personalidade dela.

Mas, nessa caracterização hipotética (notar o talvez) de Albertina, entram elementos que são característicos do próprio século XIX: a determinação do caráter também por características do corpo – a hereditariedade e a fisiologia – além da simples instrução. Características que, na concepção do século, o sujeito do corpo não pode facilmente contornar.

(*) PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 440.

Um véu encobre a lei

O que me pareceu mais interessante no artigo de Madarasz:
[...] os advogados do liberalismo e do intervencionismo militar nos países muçulmanos desenhados como hostis têm, como no caso do Afeganistão em 2001, formulado a lenta condenação do Islã a partir da questão do gênero.*
Este artigo foi escrito em 2006. Recentemente tivemos a atitude do parlamento belga. E ainda mais recentemente a do governo francês.

Para uma população de 65.000.000, há na França uma estimativa de 1900 mulheres que cobrem o rosto com véu. Isso justifica uma lei que proíba crobir o rosto? Ou devemos ver aqui algum véu que encubra a lei?


(*) MADARASZ, Norman. Foucault e a revolução iraniana: o jornalismo de ideias diante da “espiritualidade política”. In: Verso e Reverso. Ano XX - 2006/3 - Número 45 . São Leopoldo: Unisinos, 2006.

De si design II

De Proust, ainda:
Não se recebe a sabedoria, é preciso descobri-la por si mesmo após um trajeto que ninguém pode fazer por nós nem pode nos poupar, pois ela é um ponto de vista sobre as coisas.

À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 427.
E isso _ a sabedoria é como um mirante de onde se estabelece uma perspectiva para as coisas, para chegar lá é preciso percorrer por si mesmo um caminho _?

Isso é um comentário? Isso é uma paráfrase? Uma fotografia? Uma perspectiva?

De si design

De Proust, este exemplo de design subjetivador, numa relação de si a si:
[...] Odete, disciplinando seus traços, havia feito de seu rosto e de seu figurino essa criação, cujas grandes linhas, através dos anos, seus cabeleireiros, costureiros, ela mesma – na maneira de se postar, de falar, de sorrir, de posicionar suas mãos, seus olhares, de pensar – deviam respeitar.

À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 424.
Note-se aqui alguns detalhes:
(1) o desenho envolve não apenas o corpo, mas também o pensamento;
(2) a relação de si a si e o design da subjetividade estão todos voltados para o mundo;
(3) a disciplina que esse governo requer.

Mecanismos afetivos IX – a geometria das filmagens

Por exemplo, à medida que passamos a compreender as regras de confecção do cinema (sua semiótica, o jogo dos cortes, o balanço das câmeras, as inserções, os closes, as prises de vues, a influência da trilha sonora etc.), nessa medida, deixamos de ter uma percepção do filme que se caracteriza pela entrega, pelo devaneio que acompanha o fluxo das imagens e dos sons, e nos distanciamos.

[um certo estilo narrativo até mesmo compreendeu esse distanciamento como necessário; aí, a mostração exibicionista dos modos materiais de produção do cinema deveria desbancar o crédito ideológico, a magia das imagens em seu fluxo fetichista – somos porém todos tão loucos, que seria também uma loucura procurar a inversão da loucura]

Da mesma maneira, à medida que compreendemos o mecanismo das afetos, a maneira como surgem, como se intensificam ou se enfraquecem na sua relação com a imaginação e com outros afetos, nessa medida, nos descolamos de seu fluxo aparentemente caótico, aderente, e compreendemos sua lógica, ou melhor, sua geometria, a maneira pela qual, tal qual figuras geométricas, os afetos são traçados.

Esse distanciamento do sujeito em relação ao próprio conteúdo afetivo que o constitui pode parecer doentio, uma espécie de desdobramento do eu em que a identidade se perde. Talvez, porém, a relação de si a si que este desdobramento implica, pelo contrário, possa ser o início de um processo de despatologização, uma terapêutica, não no sentido de descaracterizar a afetividade como uma alienação, mas no sentido de governá-la como parte do governo de si.

Fenomenologia do espírito

Coloco um chapéu. Sinto a leve pressão da sua borda em volta do meu crânio e da pele que o envolve como um abraço, que me reconforta na tarefa solitária do meu labor.

A analítica

No processo analítico de pensamento, trata-se de partir de algo posto na ideia – uma evidência ou uma hipótese –, e mostrar suas dobras e seus desdobramentos tautológicos ou imanentes.

As dobras são os modos de reflexão internos, os constituintes constituídos pela própria evidência ou hipótese. Os desdobramentos são sua irradiação, seus raios, suas luzes, suas linhas de instituição, seus instituídos.

Na analítica da finitude, por exemplo, o que está posto, como evidente, substancial ou essencial é a condição finita do ser humano. A finitude aqui é a finitude positiva, não a privativa (não aquela que encontra sua gênese na privação de infinitude). As dobras da finitude são a fala, o trabalho e a vida. Os desdobramentos, o biopoder.

Eterno retorno do real

O princípio do eterno retorno afirma que este instante retornará em cada ciclo do tempo. Viveremos este mesmo instante novamente infinitas vezes. A ínfima dor que suportamos num instante é, segundo este princípio, uma dor infinita. Da mesma maneira, com o prazer, o ínfimo prazer de um instante, na verdade, é infinito. O instante, na sua repetição, em seu retorno infinito, é eternidade.

Viver o instante como eternidade é um princípio ético, isto é, uma regra de subjetivação (face à ética cristã, que considera que a eternidade extrapola o instante, e que submete o instante da vida a uma outra vida, salva e eterna).

Mas, talvez haja uma relação entre o eterno retorno do real e o deserto do real. No seu eterno retorno, o instante perde seu caráter de singularidade. Ao se eternizar, ele se torna uma repetição do mesmo, de si mesmo. O instante não inaugura nada, apenas repete. Nesse sentido, o eterno retorno é o tempo (como o deserto é o espaço) de uma impossível subjetivação (se a subjetivação é um esforço infinitesimal – mesmo que cego – de diferenciação ou de inauguração).

Deserto do real

No deserto, qualquer local é igual a qualquer outro. Absolutamente falando, no deserto não há movimento (se por movimento entendemos a variação de local numa duração).

Uma realidade desértica é estática (não se move) – em todo local se encontra o mesmo. O deserto é o espaço da impossível subjetivação (se a subjetivação é um esforço infinitesimal de diferenciação).

Anjo-ângulo

Um erro (um signo ou um ato falho) fez o copista inglês de algum livro (não sei mais se de teologia ou de geometria) escrever ANGEL no lugar de ANGLE.