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Dois tipos de injustiça: pedir e nada dar; dar e nada pedir. Isso, ou a justiça nada tem a ver com troca de favores, contratos e promissórias.

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Dois tipos de pessoas justas: aquelas que pedem, porque dão; aquelas que não pedem, porque também não dão.

O 5º gênero de conhecimento

Spinoza, em 1660, identificou quatro modos de conhecimento de uma coisa: o simples ouvir dizer algo de alguma coisa, a experiência vaga com a coisa, a noção da coisa pelo que tem de comum com outras coisas e a percepção direta da coisa pela sua essência singular*. (Na Ética, 1675, esses gêneros são três: imaginação, razão e ciência intuitiva).

Um quinto (ou quarto) gênero de conhecimento surgiu, na história, um pouco depois do desaparecimento de Spinoza, tornando-se cada vez mais central para o conhecimento moderno. Trata-se da estatística**. A estatística é basicamente uma tecnologia de apreensão do múltiplo enquanto múltiplo. Apesar da anomalia das singularidades, a estatística desenvolve ferramentas para a apreensão da lei do múltiplo. É o tipo de conhecimento que tornou possível a biopolítica, o governo da população pela segurança (saúde, previdência, economia).

Um dos primeiros objetos correlatos da estatística foi a população. Essa correlatividade do objeto com a tecnologia de sua apreensão indica que a população é uma entidade que surge ao mesmo tempo que as técnicas de seu governo pelo Estado.

O puro conhecimento estatístico, não sendo um conhecimento pela essência, seria considerado, por Spinoza, um conhecimento não adequado.

Inicialmente, a estatística baseou-se na simples contagem das unidades. Depois, desenvolveram-se maneiras de projetar a contagem efetuada da amostra sobre o todo, do qual a amostra é uma parte, levando-se em conta um certo erro mensurável dessa projeção.

O conhecimento estatístico contenta-se apenas com o conhecimento da probabilidade maior ou menor de que dois acontecimentos ocorram simultaneamente. Por exemplo, [fumar] e [câncer]. A estatística mede a alta correlação entre [fumar] e [câncer], para afirmar que quem fuma corre sérios riscos de saúde. Embora não possa explicitar a razão pela qual [fumar] e [câncer] estão correlacionados, nem possa afirmar que necessariamente o fumo é causa do câncer (muitas singularidades fumam sem apresentar qualquer sinal da doença).

Muito antes de se conhecer os micro-organismos e o mecanismo de imunização, o controle da varíola por inoculação já era admitida como uma técnica eficaz, no final do século XVIII.

A maior parte do nosso conhecimento atual, não só na medicina, como na economia, na física e nas mais diversas disciplinas, é um conhecimento desse quinto tipo. Na perspectiva de Spinoza, portanto, a maior parte da nossa ciência não é adequada.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Traité de la Reforme de l’Entendement [1660]. Trad. Ch. Appuhn. In: Oeuvres I. Paris: GF Flammarion, 1964. § 10.

(**) FOUCAULT, Michel. Em muitíssimos lugares, por exemplo: Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France, 1977-1978. Paris: Seuil/Gallimard, 2004 [1978].

Consumo como devastação do que se nadificou

O enfraquecimento do sentido de realidade da singularidade (as coisas singulares deixam de parecer reais em si mesmas) coloca o mundo diante de nós, as coisas e os outros seres humanos, como simples presa à disposição.

Isso é compreender, pela outra ponta da corda, o que escreve Hegel: "Nem mesmo os animais estão excluídos dessa sabedoria, mas antes se mostram iniciados no seu mais profundo; pois não ficam diante das coisas sensíveis como em si essentes, mas desesperando dessa realidade, e na plena certeza de seu nada, as agarram sem mais e as consomem".


HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. Petrópolis: Vozes, 2002 [1807]. P. 93.

O não-ser é impensável

O jovem Werther: "Morrer! O que isso significa? Vê, nós sonhamos quando falamos da morte. Vi morrer muitas pessoas, mas o ser humano é tão limitado, que não faz nenhuma ideia do começo e do fim de sua própria existência".

Epicuro: "[Isso que, para a multidão, é] O mais terrífico do males, a morte, não tem qualquer relação conosco, pois, precisamente, enquanto nós somos, a morte não está-aí, e uma vez que a morte está-aí, então nós não somos mais".



GOETHE, Johann Wolfgang von. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: L&PM, 2006 [1774]. P. 177.

LAËRCE, Diogène. Vie et doctrines des philosophes illustres. Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. P. 1309.

Escrito em parci (uma língua parcial), não em parsi

O não-ser é impensável. Por isso, ser e pensar são o mesmo.

Mas, se ser não significa o mesmo que existir, e se nem todo pensar é consciência (pensar que pensa), então:

• O pensamento seria consciente apenas enquanto existisse (penso que penso, logo existo).

• E o pensamento sem consciência, embora sem existência, não deixaria de ser.

Martírio e suicídio – parcial

O suicídio é uma negação daquilo que só sabe se afirmar e se efetuar, e nesse sentido é paradoxal, portanto, impossível, inexistente. Aquilo que só é porque é efetuação, potência, produção sem limites de efeitos, não pode por si mesmo se limitar. Toda potência só é finita porque limitada desde o exterior.

Aquele que se suicida, de certa forma, já está morto. Para que suceda o ato, pelo qual se rompe a conjunção das partes que compõem o suicida, é preciso que essa disjunção já se tenha efetuado antes (logicamente antes). O suicida morre antes de se matar. Quer dizer, antes de se suicidar já estava, logicamente, transformado em outro que ele mesmo. A morte só consuma a disjunção.

De qualquer forma, o martírio não é suicídio, mas uma exposição, uma provocação do limite. O mártir se expõe à morte, mas não provoca sua própria morte. O mártir é morto, não se mata.

Retomar o fio rompido

Precisaríamos saber se, ou em que medida, as contestações de 2009, no Irã, retomam e se vinculam àquelas do glorioso levante de 1978-9. Talvez, sua única possibilidade de sucesso esteja nessa retomada.

A partir da revolução de 1979, estabeleceu-se no Irã uma hierocracia (a intermediação da relação entre a potência da multidão e a divina, por um corpo de teólogos, que se apropriam, em detrimento da multidão, das prerrogativas da interpretação da causa essendi do Reino de Deus).

Pelo menos uma boa parte dos insurgentes de 1978-9 (na época, havia a aparência de unidade, ou havia unidade, mas constituída apenas em torno de alguns poucos pontos incontroversos) não desejava a hierocracia, mas algo como uma teocracia (a sujeição direta de toda a multidão a Deus, que só tem uma solução na democracia – que obviamente não é ocidental como "a nossa").

Hoje, 2009, não parece ser possível a unidade atingida em 1978 (pela inabilidade do Xá e pela habilidade de Khomeini, que não apresentava um programa positivo de governo, mas apenas dizia não ao programa biopolítico do Xá). Ora, foi justamente a potência dessa unidade que consumiu o poder (sempre algo imaginário) do Xá.

O mártirio suprime a essência da política

Novamente, paira por lá a sombra do martírio: “Mr. Moussavi says he has taken a path that has no return and he is ready to make sacrifices.

Mas quando a flâmula do autossacrifício começa a flamejar, a coisa se incendeia.

A abertura para a morte suprime o fundamento da biopolítica, que é a promoção da vida.

Mas como chegamos nisso – dizer que um regime hierocrático é um regime biopolítico? O corpo de teólogos, no Irã – a fuqaha, não cuida da alma e descuida do corpo?

O martírio não só suprime a essência da biopolítica, o que parece incontestável, como também, mais essencialmente, ele suprime a razão de ser de qualquer política.

Meu time

Então, eu seria um flamenguista?

Questão de torcida...

No momento fundamental para o Irã, em que reaparece a potência viva da multidão, Lula, ao que se anuncia, dá um passo atrás e faz sua a retórica conservadora: "Eu não conheço ninguém, a não ser a oposição, que tenha discordado da eleição do Irã. Não tem número, não tem prova. Por enquanto, é apenas, sabe, uma coisa entre flamenguistas e vascaínos", afirmou o presidente, segundo a BBC.

As desvinculações que possibilitaram a biopolítica

O vínculo entre a finitude humana e o infinito era (e ainda é, mas numa medida menor) intermediada, por via da imaginação, pelas religiões.

O racionalismo radical fez a crítica da imaginação e do seu aspecto nefasto, a superstição, que permite a captura política do vínculo finito-infinito, com a instituição de modos de assujeitamento teológicos. O racionalismo radical, porém, resguarda o acesso ao infinito, via intuição intelectual (via perardua).

O iluminismo tardio, por sua vez, faz a crítica da própria intuição intelectual, denunciando sua impossibilidade. Com isso, no limiar da modernidade, estão cortados os dois vínculos que o ser humano estabelecia com o infinito: a imaginação e a intuição intelectual. Nessa concepção, não estamos apenas privados de nossa remissão ao infinito, essa remissão nos é mesmo negada.

Dentro desse movimento, o romantismo e o idealismo talvez tenham sido apenas o fôlego moribundo do pré-moderno.

O finito em sua finitude absoluta, esse seria o legado à disposição da modernidade.

Desse legado, de nossa ruptura absoluta com o infinito, da remissão do finito à sua finitude, pensou-se constituir a liberdade, embora, para ser rápido, instituiu-se a biopolítica.

Fazer do filme, uma pintura

A saturação de nossa imaginação (como as imagens do cotidiano saturam a retina do gato) tende a fixar, na ciência do que costuma acontecer, o que em si é móvel. Atribuímos a essa ciência o que fixamos e universalizamos, pois a multiplicidade de singularidades móveis não pode ser alcançada pela imaginação. Como o gato, fazemos da vida ciência, só porque nossa imaginação falha.

Casuística III

Aos olhos do gato, aquelas cenas cotidianas matinais, o café do bule à taça, o movimento de vai e vem, o som vivo de chamados mútuos, a colocação de objetos em sacos, o arrastar de cadeiras, a pressa, a esgrima com facas e colheres, o cheiro de manteiga e pasta de dente, até que a porta se abrisse, e tudo isso e todos escoassem por ela, formavam como uma só cena, fixa nas impressões acumuladas, ao longo dos anos, sobre sua retina, mais uma pintura do que um filme.