É compreensível a repulsa melancólica que nós, brasileiros, experimentamos diante da política despida dos mitos republicanos do bem comum e da soberania popular*. Para nós, tudo se expôs, às claras.
Fim do mito e exposição da nudez são dois processos correlatos; pois, no mito, o nu oculto se mostra e age, mas apenas sob belas e suportáveis roupagens** (personas mascaradas***).
Isso que se expõe e se desnuda, com o fim do mito, são as excreções humanas políticas, que, no mito, permaneciam veladas, ou apareciam como anormais, tal como certas excreções humanas individuais. Em uma palavra: as fezes e as excreções do sexo, que fazem parte de nossa psique como o fundo submerso de um iceberg, estão expostos à vista e ao olfato. E isso é horripilante****.
A lei tem a função de manter oculta***** a nudez política humana, o amor do Eu (o narcisismo secundário), tirânico, sádico, sem lei, sem outro, infantil. Sem a lei, na negação do outro, o pior de nós, humanos, emerge. “Pois o ser humano, quando aperfeiçoado [pela lei democrática comum, isto é, pela presença divergente dos outros-rivais], é o melhor dos animais, mas, quando separado da lei e da justiça, ele é o pior de todos”******. Trata-se, nesse extrato de Aristóteles, – e é isso que justifica minha intercalação entre colchetes – da lei razoável, precisamente no sentido de uma lei que aperfeiçoa, pelo reconhecimento da alteridade.
No caso do Brasil, é pela própria lei (mas injusta, porque parcial) que se expõe o que precisaria permanecer encoberto. Isso nos enoja e nos entristece (a repulsa melancólica). No entanto, poderíamos ver aí uma vantagem. Uma possibilidade de amadurecimento diante da realidade e sob efeito dela. O reconhecimento da necessidade de ajustar a lei.
Nossa constituição política atual (nossa politeia) se mostra absolutamente incapaz de denegar os piores impulsos humanos, que estão efetivos nas atuais relações de potência (a dunasteia)*******.
(*) Fim do mito, fim da ideologia? Conferir: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’idéologie Allemande. (1845-1846) Première partie. Trad. H. Hildebrand. –: Nathan, 2003 [1846].
(**) FREUD, S. O tema da escolha do cofrinho [1913]. Trad. P. C. Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 301-316.
(***) HOBBES, T. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994 [1651]. I, xvi, §3. P. 101.
(****) FREUD, S. Prefácio a “Ritos escatológicos do mundo inteiro” [1913]. Trad. P. C. Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 346-350.
(*****) ARISTÓTELES, –. Politics. Trad. Benjamin Jowett. In: MCKEON, R. (Org.). The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941. I, 2, 1253a30. P. 1130.
(******) “Manter oculta” é uma forma de incluir-excluir. Conferir AGAMBEN, G. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Ufmg, 2004 [1995].
(*******) Para as relações entre politeia e dunasteia, conferir a lição de: FOUCAULT, M. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983]. P. 145.
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