Da mística à política II


A mística é a experiência inefável do contato imediato com a potência divina. Tomada em absoluto, a experiência mística é o fim da experiência propriamente dita. O fim do tempo. O fim da ideia de si. O fim da percepção do objeto. O fim da imaginação. O fim da afetabilidade passional.

Por tudo isso a “experiência” mística é em si mesma indescritível. Pode-se dar indicações, metáforas, do que ela seja. Indicações e metáforas que precisam ser elevadas a uma potência infinita para que se possa conceber o que a experiência mística é em absoluto.

Pode-se, intimamente, na sua aproximação intelectual, ainda se ter dela um sentimento, um resquício de experiência, que porém não se refere a uma memória.

Pode-se, também, apontar o caminho, a ascese, a prática, os exercícios pelos quais se pode alcançar esse estado. Mas não se pode, em nenhum caso, descrever esse estado em si mesmo.

O caminho indicável que leva à experiência mística é duplo, conforme o tipo de exercício de remédio para os fantasmas da imaginação: um caminho explosivo, um caminho purgativo. Ou se eleva a potência imaginativa a um tal grau que as imaginações se multiplicam ao infinito até se anularem umas às outras. Ou se suprime progressivamente as imaginações fantasmagóricas até a visão do real absolutamente racional. O resultado é o mesmo: o fim do tempo, da consciência de si, da afetabilidade...

Ao nos colocar em contato direto, imediato com a potência divina, os dois caminhos, tomados em absoluto, nos retiram da política.Entenda-se a política como o processo de intermediação do contato da nossa potência com a potência divina da qual somos parte. Essa intermediação se faz pela e com a imaginação, que a experiência mística, tomada em absoluto, suprime de um ou de outro modo.

Aos hebreus, ao saírem do Egito, com o fim do político que essa saída representava, ofereceu-se a oportunidade de um contato sem mediação com Deus. Porém, por medo do fim que este contato implicava para o si, para o tempo e para a imaginação à qual estavam tão apegados, pelos longos anos de escravidão a que foram submetidos, elegeram Moisés como intermediário desse contato e, com isso, restauraram o político.

A multidão hebraica, ao recusar a experiência mística por medo, ou seja, por um afeto que teme, com o fim da afetabilidade, seu próprio fim, instaura uma distância imaginária com a potência divina da qual faz parte, portanto, uma distância que também os distancia de si mesmos.

Moisés é eleito seu guia, ao molde de um monarca. Mas Moisés não é um propriamente um monarca, é mais que isso, é um profeta-monarca. Profeta aqui indica que tem um contato com Deus. Este contato era direto? Ou ainda restava no contato de Moisés com a potência divina a potência da imaginação do corpo de Moisés? Dito de outro modo, no caminho de contato com a potência divina, representado pela subida do Monte Sinai, Moisés seguia o caminho de potencialização da imaginação ou o caminho racional purgativo? A experiência mística mosaica se dava como hiper-imaginação ou como hiper-razão? Não se sabe ao certo. Para Maimonides, por exemplo, Moisés seguia o caminho racional, e foi o maior dos filósofos; para Spinoza, por contra, o da imaginação. Para este último, Moisés foi o maior dos profetas do antigo testamento.

Spinoza afirma que Moisés imaginava a Deus. Assim, pelo que dissemos, acrescenta-se que Moisés, mesmo dispondo de uma hiper-imaginação, maior do que a de todos os profetas, que lhe permitia perceber a Deus como se estivesse face a face com ele, enquanto todos os outros profetas apenas imaginavam a Deus em sonhos, mesmo assim, Moisés não alcançava a plenitude mística, aquela que eleva a imaginação a um tal nível que termina por romper com ela. Se, é certo, Moisés tinha um contato mais próximo com a potência divina do que qualquer outro místico imaginário jamais teve, ele ainda continuava a imaginar a Deus. Ou seja, seu contato ainda era intermediado pela imaginação, Moisés ainda percebia a Deus como um objeto, ainda mantinha nesse contato uma percepção de si mesmo, ainda apreendia sua experiência de Deus no interior do tempo.

Seja como for, racional ou imaginária, a experiência mística de Moisés não era tomada absolutamente. Como profeta ou como filósofo, Moisés não tomava sua experiência mística de modo absoluto, sem retorno. Moisés mantinha-se ligado ao político. Como profeta, passava continuamente da mística à política.

Como intermediário entre Deus e a multidão hebraica que governava, Moisés continuamente passava da experiência da potência divina naturante, do contato direto sem ou quase sem afetação com a essência divina da qual sua essência singular era uma parte eterna, para a experiência existencial da afetabilidade em meio aos outros que, como ele, eram partes da natureza divina naturada.

Enquanto a experiência mística não é tomada em absoluto, como um caminho sem retorno, como um tipo de desistência ou de desexistência, o trajeto político, a passagem da mística à política, no profeta do imaginário ou no filósofo do racional, é contínuo. Essa continuidade coloca a mística no centro da política, a razão no meio da paixões, a deus em meio a si e aos outros, a eternidade no seio da existência.

Da mesma forma que o processo fantástico do profeta, o processo ético do filósofo não é o caminho sem retorno para a mística, digamos não é o caminho de uma espiritualização que nos retira do político, mas o duplo percurso, o duplo trajeto que aprofunda a experiência mística ao mesmo tempo que aprofunda a experiência política. A ética não é a espiritualidade apolítica. A ética é a politização da espiritualidade.

A essa “espiritualidade política” têm acesso, por caminhos diversos porém, não apenas o profeta e o filósofo, como também os humanos vulgares. O profeta, como vimos, pelo incremento da imaginação. O filósofo, por meio da ética, como exercício continuo de um conhecimento metafísico. O humano vulgar pode exercer, ou ser levado a exercer, a “espiritualidade política” pela correção da religião, pelo exercício da verdadeira religião.

Da mística à política

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