Prisão


Já pensamos, com Freud, a origem oral dos juízos morais, aqueles acerca do bom e do mau. Por seu lado, Canetti persegue a origem do poder a partir da captura e da incorporação. Desta última um dos estágios é a oralidade. “Os dentes são os guardiões armados da boca. Esta, sendo um espaço realmente exíguo, constitui o modelo de todas as prisões”*. Para Canetti, portanto, a prisão é a boca desdobrada como aparelho de poder; as grades são o desdobramento dos dentes.

A palavra “oral” nos vem do latim oris (genitivo de os). Oris é isso que é da boca, que é pertinente à boca. Os, a boca, mais tarde, assume, no latim, por metonímia, o sentido do rosto todo – assim como no francês gueule diz boca ou rosto. Os Gorgonis é a boca ou a cara horripilante de Medusa**. A boca sobressai no rosto, a tal ponto que o rosto todo se resume à boca (veja aqui uma imagem disso).

Por meio da oralidade, se compreende a vinculação da moralidade com o poder, afinal: “Tudo o que se come é objeto do poder”**.

Leva-se à boca o que é bom; mas, à prisão, o que é mau. – Se a boca é o modelo para a prisão, o bom, de certa forma, também é modelo para o mau. A prisão é, como aparelho de poder, um pôr para dentro; e, como aparelho moral, um pôr para fora.

Para o poder, a prisão está cheia de maus humanos. Mas humanos têm bocas. A prisão está cheia de bocas. Presos são decapitados. Cabeças (ou bocas) de Medusa jazem inertes, cortadas, como troféus. Cortar a cabeça é cortar o pênis e a boca****, símbolos do poder.

Canetti é exato na distinção real entre boca e prisão. A boca remete à força. A prisão, ao poder. Entre poder e força, entre prisão e boca, uma certa “ampliação do espaço e do tempo”*****. Como a brincadeira do gato com o rato é um exercício de poder, não exatamente de força.

Quando a prisão mata, ela é boca, o poder é força.



(*) CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960]. P. 207.

(**) Para Freud, esse horror está ligado ao temor masculino de que a vagina seja uma boca, que ela possa morder. Mas esse temor aparece junto com o desejo sexual. “A visão da cabeça de Medusa torna rígido de terror” e de desejo. É talvez a vagina da mãe: desejada e interdita. FREUD, Sigmund. A cabeça da Medusa [1922]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 327.

(***) CANETTI. Op. Cit.  P. 218.

(****) Conferir: FREUD, Sigmund. Uma relação entre um símbolo e um sintoma [1916]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 12 (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 291.

(*****) CANETTI. Op. Cit. P. 282.

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