Anti-Ratio VIII – Reflexão da imbecillitas


I

Já disse em outro lugar como Gaffiot compreende o florescimento dos sentidos das palavras no latim desde o material-concreto até o espiritual-abstrato.

Assim também ocorre com imbecillitas.

Primeiro, imbecillitas significou uma deficiência física qualquer, somente mais tarde, como se fixou no português para imbecilidade, significou uma deficiência de reflexão. O imbecil, no português, é aquele incapaz de refletir, de pensar o real retamente e completamente.

No entanto, no latim, imbecillitas apontava inicialmente para aquele portador de um déficit físico que de alguma maneira limitava a sua performance corporal, o leque de seus movimentos e de seus alcances corporais.

II

Por “reflexão da imbecillitas” refiro-me ao manifesto de Glauber Rocha, Eztetyca da fome. O faminto é de certo modo um imbecil, um debilitado, um enfraquecido, em todos os seus sentidos latinos.

A eztetyca da fome, para Glauber, não é uma estética sobre a fome, como poderia produzi-la um europeu bem-nutrido, bem-pensante. Mas uma estética faminta, produzida pelos que têm fome, pelos pobres de pensamento. Uma estética raquítica, pobre, feia, imbecil.

III

É a partir da eztetyca da fome que poderia se esboçar uma outra crítica negativa à estética de Sebastião Salgado. Ela é uma estética sobre a imbecilidade, não a estética própria de um imbecil. A arte de Salgado é uma arte plena, forte, inteligente, em suma, uma arte europeia. E uma arte da transcendência, em que se expressa uma sensibilidade, um olhar divino-europeu sobre o mundo humano da queda, da fome, das vítimas da guerra e da doença.

IV

Essa crítica negativa, entretanto, pode ser dita uma crítica impertinente ao próprio ser de Salgado. Já que Salgado ao longo do seu trabalho expõe o seu devir imbecil. Salgado se torna em seu ser um imbecil, que precisou retornar a seu princípio, conforme o conselho de Maquiavel, para se fortalecer novamente.

V

Nos moldes de uma eztetyca da fome, a reflexão da imbecillitas pretende uma reflexão do imbecil, propõe o pensamento do incapacitado para pensar, uma reflexão imbecil propriamente “latino-americana”, não uma reflexão sobre o imbecil ou sobre a América Latina.



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