“Componho atualmente um tratado [...] e meus motivos, para fazê-lo, são os seguintes: [...] a opinião que tem de mim o vulgo, que não cessa de me acusar de ateísmo”*.Para refutar seu ateísmo, Spinoza escreve todo um tratado (o Theologico-politicus), que versa sobre o modo, para ele, correto de considerar a Deus, a religião, a piedade. Isso é o que chamei de resposta aberta, por sua forma dispersa.
Entretanto, em uma ocasião, pelo menos, a sua defesa é muito mais direta e pontual. Essa ocasião singular mereceu ser destacada, aos olhos iniciados e amigos dos editores de sua obra póstuma, no índice dos assuntos (index rerum) da edição de 1677, sob o verbete athei. A indicação refere à carta em que Spinoza responde à resenha feita, por um tal de Lambert von Velthuysen, justamente, do Tractatus theologico-politicus.
Para Velthuysen, o TTP “clam Atheismus introducit”, insinua sub-repticiamente o ateísmo. Ou seja, a julgar pela compreensão de Velthuysen, ao menos no tocante a este assunto, o referido tratado não havia alcançado os objetivos inicialmente visados por Spinoza, que ainda precisava se defender da mesma acusação que o levara a escrever o TTP.
Então, a resposta que dá Spinoza é mais precisa:
“Costumam, com efeito, os ateus buscar exageradamente as honras e riquezas, duas coisas que eu sempre negligenciei; como todos, os que me conhecem, sabem” (**).A prova que Spinoza apresenta contra a acusação de ateísmo é o fato de ele negligenciar as honras e riquezas, e não o fato, por exemplo, de ele afirmar a existência de Deus, como ele efetivamente faz, em vários lugares determinados do TTP. De que significado essa resposta é significante? Vejamos.
Como Spinoza escreve no TTP, cap. XIV, a fé em Deus não é do foro íntimo. A fé não se julga apenas pela fala interna que afirma, diante da própria consciência, eu acredito em Deus. Mas a fé é como um ato de fala, ou seja, uma fala que precisa estar conjugada com uma obra, com uma ação que concorre com a fala, assim como, na geometria, a propriedade dos três ângulos somarem dois retos vincula-se necessariamente à definição do triângulo.
Essa negligência das honras e riquezas é uma espécie de obra, de manifestação objetiva da afirmação interior e convicta da existência de Deus, da fé. Spinoza, mais uma vez, está dizendo não bastar ter fé, para obedecer a Deus, mas ser preciso também obrar. A obra que ele apresenta, como testemunho objetivo de sua fé, é a negligência das honras e riquezas.
Por outro lado, aliás, Spinoza diz não bastar obrar, para ser salvo. – Ora, não basta apenas negligenciar as honras, as riquezas, mas também é preciso que isso seja feito por obediência a Deus, por fé, por acreditar na existência de Deus. Dito de outro modo, é preciso que esta negligência seja uma ação, e não uma paixão. Não negligenciar honras e riquezas por temer não as possuir, ou para rebaixar quem as possui. Mas as negligenciar, por entender, racionalmente, que nem honras nem riquezas constituem o verdadeiro bem, ou – numa versão menos intelectual – por amor para com Deus. É preciso negligenciar as honras e riquezas, diante de Deus. Esse é o ato de fala, essa é a prova que Spinoza oferece para se defender da acusação de ateísmo.
Esse ato (a negligência das honras e riquezas) de fala (eu acredito em Deus) coloca em questão muitos dos que se dizem fiéis: aqueles que, embora se digam fiéis, de fato, não negligenciam, mas admiram as honras e riquezas, como muitos dos mais veementes teólogos.
Com seu dito, Spinoza inverte o objeto da acusação. Veja, Venthuysen, os que se dizem fiéis, dizem seguir os preceitos da religião, mas, na verdade, o que consideram como sumo bem, o que mais admiram, o que mais desejam, sem qualquer penitência, são as honras e as riquezas, e, com isso, negligenciam ao Deus, no qual dizem acreditar. Esses são os verdadeiros ateus, os verdadeiramente perdidos***.
(*) Na tradução de Appuhn: carta XXX a Oldenburg. Essa carta não consta da Opera Posthuma.
(**) Opera Posthuma, 1677. Carta XLIX, p. 553. Conferir, na tradução de Appuhn, a carta XLIII.
(***) No início do Tractatus de Intellectus Emendatione, Spinoza elenca três bens que os humanos consideram supremos: além das honras e das riquezas, a licenciosidade (libido) – a satisfação sem freios da volúpia ou desejos sensuais. Mas Spinoza distingue a licenciosidade, porque esta, ao contrário das outras duas, vem sempre acompanhada, naturalmente, da penitência.
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