A questão da essência do documentário: – o que é um documentário? O que faz do cine-documentário algo específico e distinto do restante do cinema?
Há o cinema. Há, primeiramente, a ficção, como gênero cinematográfico.
A ficção fílmica envolve a imaginação, a fantasia e, no espectador, um certo esquecimento do real, uma entrega momentânea ao devaneio, à ilusão. A ficção é mais ou menos independente do modo como as coisas realmente acontecem. Há um relativo descompromisso com a verdade, diante da ênfase colocada nas questões plásticas ou estéticas.
Há, por outro lado, o documentário. Então, deve haver algo de específico ao documentário, que o torne distinto da ficção, que faça do documentário um segundo gênero de cinema.
Isso aparece imediatamente no material do documentário. Esse material é a verdade da realidade. O cine-documentário (à diferença do cinema-ficção) filma/mostra a realidade, o real. O documentário espelha o real.
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Temos, então, no documentário, uma composição feita com um material imagético bruto (imagens e sons) captados diretamente do real.
Muito bem. Porém, nessa composição que é o documentário, esse material bruto captado precisa ser capturado.
A composição do documentário é uma elaboração do real, na medida em que é uma elaboração do seu material imagético bruto sob algum princípio de realidade, que dá alguma coesão e coerência ao que se filma e se mostra.
Esse princípio de realidade, o documentarista, na medida em que ele se destina à verdade, o pressupõe como constituinte do real e, ao mesmo tempo, do filme.
No filme, o princípio de realidade orienta a seleção dos planos filmados, a montagem.
De alguma maneira, o documentarista, na sua busca de inteligibilidade do real, na busca da coesão e da coerência das imagens e sons, submete o material bruto a esse princípio de realidade pressuposto.
Às vezes, também, é no próprio material imagético bruto que o cineasta-documentarista encontra, descobre, esse princípio de realidade.
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A captação e a composição do material imagético bruto ou real de imagens e sons documentais indicam uma captura do real (que é muito mais do que uma simples captação).
Sob análise, poderíamos dizer que essa captura se efetua sob dois operadores.
Um operador sensível, imagético ou plástico, atuante nas escolhas de enquadramento, de iluminação, de captação do som, de trilha sonora, na seleção plástica e na justaposição, repetição, afastamentos das cenas e dos planos.
E um operador inteligível ou cognitivo, atuante na inteligibilidade, na interpretação, na ordenação e na articulação do material imagético, sob algum princípio de realidade, para a produção da verdade.
Certamente, eles não são dois operadores distintos, mas, antes, dois aspectos da operação fílmica do documentário revelados pela análise.
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Esse elemento operador plástico somado ao operador cognitivo constituem o que poderíamos chamar de elemento estético incontornável ao documentário (que envolve um princípio plástico e um princípio de inteligibilidade).
Que esse elemento estético seja incontornável quer dizer que ele pertence à essência do documentário.
O reconhecimento desse elemento estético, como uma operação sobre o real que é distinta da própria realidade, nos deixa, perigosamente, muito próximos da ficção.
Mas, por que perigosamente? Por que sentimos aí algum perigo? Porque todo elemento ficcional (próprio à ficção, à imaginação e distinto da própria realidade), constatado no documentário, o coloca sob suspeita, gera desconfiança.
Nós acreditamos que o documentário espelha o real e, por isso, não aceitamos que o documentário manipule o real. Uma manipulação artística do real, uma técnica de manipulação do real: isso é a ficção, não o documentário!
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Quando, para nós espectadores, está disposta e estabelecida, a priori, antes da própria experiência fílmica, a afirmação: “– isto é um documentário”, nós entramos na sala de cinema sob o selo de um pacto. O espectador entra com sua confiança na peça documental; e o documentarista, com o compromisso com a verdade.
DOCUMENTARISTA: – Isso é um documentário! Isso é a verdade do real!
ESPECTADOR: – E nós acreditamos! Em primeira ordem... até segunda ordem...
Esse pacto de realidade é colocado sob suspeita (ou até mesmo totalmente suspenso) com a evidenciação dos elementos estéticos. Quando o espectador percebe a aspereza dos operadores plásticos e cognitivos empregados na técnica do documentarista, ele se retira do pacto, parcialmente ou integralmente, colocando em cheque o caráter de veridicção do documentário.
De maneira geral e no limite, essa evidenciação dos elementos estéticos coloca em risco o próprio status de documentário, fazendo o filme bascular do gênero documentário para o gênero da ficção, isto é, do segundo para o primeiro gênero de cinema.
Assim, à medida que o espectador aprimora sua ciência cinematográfica, à medida que para ele se tornam evidentes os elementos estéticos (plásticos e cognitivos) incontornáveis ao documentário, até mesmo nas suas espécies mais imediatas (nas captações fílmicas supostamente menos mediadas por esses elementos estéticos) como na reportagem de atualidade ao vivo, mais ele desqualifica o caráter documental do documentário.
O espectador compreende que esse elemento estético está presente desde o momento da captação em imagens e sons dos fatos reais, por exemplo, já no enquadramento. Nessa medida, toda captação do real já se mostra como uma abstração da complexidade real, como um recorte intencional de algo que o documentarista quer mostrar. Nessa medida, em toda captação e composição do real no material imagético já está em jogo uma interpretação do real, distinta do próprio real, que evidencia uma vontade de saber, que é também uma vontade de poder sobre o real.
Isso faz de toda captação do real uma captura (uma apropriação, uma tomada de posse). Nessa captura, enreda-se eventualmente o espectador.
Na gênese do documentário, inexoravelmente, encontra-se, então, esse elemento estético, esse elemento de invenção que pode ser dito ficcional. Isso quer dizer que a essência do documentário é uma quimera? Que ela não existe? Que tudo no cinema é ficção?
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De toda maneira, há nesse elemento estético do documentário, precisamente no operador cognitivo do material imagético bruto, algo que, talvez, possamos resguardar, se nós abandonarmos a nossa ideia mais imediata de que o documentário filma o real, de que o documentário espelha, numa mostração, o real.
Podemos resguardar, no operador cognitivo, no princípio de realidade utilizado, posto em prática, posto em filme, pelo documentarista, na produção cinematográfica da verdade, um elemento próprio, específico, essencial, do documentário.
É preciso, então, nos inclinarmos para esse princípio de realidade que permite e orienta a filmagem do real, desde a captação das imagens e sons e a sua seleção, até a montagem, que justapõe, articula, potencializa esse material bruto.
Eu entendo que esse princípio de realidade que se põe em jogo no documentário (e não na ficção) é o que a filosofia (e a epistemologia) chama de uma teoria da verdade.
Podemos pensar que a essência do documentário envolve, geneticamente, uma teoria da verdade determinada, e que o documentário a filma, isto é, que o documentário põe em filme, ao pôr em prática, essa teoria.
Esse pôr em prática, em filme, essa teoria da verdade determinada, envolve, certamente, uma técnica específica, uma técnica de filmagem, uma técnica de montagem. Essa técnica não nos parece algo diferente dessa teoria da verdade, mas se confunde totalmente com ela.
Portanto, a teoria da verdade em jogo no documentário é, ao mesmo tempo, uma teoria, posta em prática, sobre a maneira de se produzir verdadeiramente a verdade. Uma teoria da verdade que é, simultaneamente, uma teoria da técnica da produção fílmica da verdade, uma técnica do documentário.
Essa teoria da verdade filmada, que é também uma técnica de produção da verdade, é a essência do documentário.
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Essa teoria da verdade constituinte da essência do documentário, por sua vez, coloca o documentário numa relação essencial com a essência da filosofia.
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